segunda-feira, 12 de maio de 2014

Quando o morro descer e não for carnaval - Parte II - Final

Acordei.

Nem lembrava que tinha dormido, peguei no sono sem ao menos me dar conta, do tanto que a exaustão me assaltou. Minha família ainda dormia, e o silêncio, apesar de ser bem-vindo depois daquela madrugada perturbadora, parecia bastante suspeito. Tive medo de olhar por entre as cortinas, mas quando vi lá fora o arco-íris que fazia, senti brilhar na alma uma estrela de esperança.



Vi as pessoas se mobilizando, juntando os cacos, consertando os telhados, as vitrines quebradas, as antenas de internet, postes de luz. Alguns enterravam seus mortos, outros faziam cerimônias simbólicas, já que os corpos haviam sumido na grande enchente, ou simplesmente não tinham sido localizados. Alguns colocaram uns barquinhos com os pertences dos que partiram para o mar levar na praia, fizeram luais com as músicas que eles gostavam. Funerais resignados, daqueles que não há tristeza, pois sabe-se que cada um que partiu continuará vivo em alguma outra dimensão, ficando apenas a doce recordação e a certeza na justiça de Deus e no futuro reencontro.

E por alguns dias vivemos como nos tempos antigos, tomando banho de caneca e cozinhando em fogueiras. Nessa reconstrução, as pessoas passaram a conversar com vizinhos que nunca tinham olhado para a cara. Inclusive eu. E nas tardes com um belo pôr-do-sol, as mulheres levavam café com bolo de cenoura quentinho para os homens que levantavam de novo as lages, pintavam paredes.

E por um instante lágrimas límpidas de emoção passaram pelo meu rosto. Sorri. Todos na minha casa estavam bem, e eu já não precisava andar de roupas belas e maquiagem, apenas o sorriso no rosto e a naturalidade já enfeitavam como nada mais poderia.

Roupas leves e flutuantes vestiam as pessoas, e moda já não existia mais. Consumismo não existia mais. Preconceito foi embora. Dinheiro, nem havia mais lembrança do que seria isso. Petróleo não existia mais, tudo havia sido levado por aquela tempestade que limpou o mundo. E uns músicos tocavam de graça após o almoço, fizeram-se hortas nas casas. A energia elétrica voltou depois de sete dias, água encanada depois de quatorze, internet depois de vinte e um.

Seria Lei que cada um só trabalhasse do que realmente gostasse e sentisse a vocação bater forte na alma.

E a Terra ainda transcorria-se com pequenas falhas, mas o amor ao próximo predominava. Esse era o único governo, único decreto. E depois daquele dia ninguém mais sentiu vontade de infringir as leis, e as crianças puderam crescer felizes, os idosos descansar em paz, os adultos e jovens conviver em harmonia.

E o caos nunca foi tão bendito, pois fez brilhar dentro de cada um o anjo que queria sair da queda em direção da Luz. Regeneração, enfim.

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