[...] "O povo virá de cortiço, alagado e favela
mostrando a miséria sobre a passarela
sem a fantasia que sai no jornal
vai ser uma única escola, uma só bateria
quem vai ser jurado? Ninguém gostaria
que desfile assim não vai ter nada igual
Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga
nem autoridade que compre essa briga
ninguém sabe a força desse pessoal
melhor é o Poder devolver à esse povo a alegria
senão todo mundo vai sambar no dia
em que o morro descer e não for carnaval."
(Wilson das Neves - Fragmento da música: O dia em que o morro descer e não for carnaval)
Foi uma daquelas noites nas quais a gente relembra o que é ter medo. Aquele pavor de verdade, de esfriar as entranhas, que vai muito além e com muito mais intensidade do que pensar que existe um bicho-papão dentro do guarda-roupa ou debaixo da cama.
Ouviam-se sirenes...
Eram três da manhã, e dizem que a esse horário as portas do inferno se abrem - reparou como os crimes mais hediondos e os telefonemas mais cabulosos acontecem depois das três? - e mais do que nunca, naquela madrugada levei a lenda a sério.
Ouvi barulhos de viaturas cantando pneus lá fora. Meus pais acordaram, minha irmã dormia como uma pedra. Pensei que fosse só mais uma perseguição banal. Fomos para as cortinas da varanda, na escuridão, e por detrás delas espiamos o caos que havia lá fora. Aquilo estava longe de ser normal. Uma onda, um mar infindo de gente revoltada, enlouquecida, arrombando e saqueando os comércios, munidas de armas brancas, revólveres, pedaços de pau, quebradeira. Tive a impressão de ver uma versão brasileira e contemporânea da Revolução Francesa. Empalideci. Tranquei as portas nos três trincos. Meu pai tentava manter a calma, minha mãe desabava em prantos, e acordei minha irmã avisando sobre o pandemônio que estava, travamos a janela dela.
A tropa de choque não dava conta. Liguei a TV sem som para não atrair a atenção daquela turba para a minha casa, e vi que não era só naquele bairro. No Rio de Janeiro, em Minas, na França, na África, Cazaquistão. E não há exército que seja páreo para tanta gente. Gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral já não assustavam mais o povo revoltado, pelo contrário: Parecia que aquilo aumentava ainda mais a sua raiva, e consequentemente, a sua força. "A multidão é um monstro sem rosto", como diria Racionais. O derramamento de sangue foi imediato, cavalaria, tiros de fuzil, sangue, grito, inferno, sangue, sangue, cabeças voando pelo ar, sangue, sangue, terror. Os campos da morte deveriam estar sofrendo de superlotação àquela altura.
O meu corpo tremia, se revoltava contra mim, a cabeça maquinava em modo turbo para tentar salvar nossas vidas, pois já podia sentir o povo chacoalhando o portão lá embaixo, forçando para entrar. Claro que não tardou para subirem as escadas, chegarem perto das portas que foram reforçadas com as estantes e os sofás. Nos abraçamos, nós quatro. Naquele momento, a desavença foi embora. O pai pegou a escada, senti muito pelas minhas roupas, pela casa, por tudo. Arrasariam tudo, assim como haviam feito nas ruas. Subimos para a lage. Não dava para saber se eles haviam entrado ou não. Nos apegamos na fé, no terço, em Nossa Senhora, Deus, os Espíritos, Orixás, Buda, Jesus, Maomé, Entidades da Natureza, o que fosse. Achei estranho, decidiram voltar para a rua, do nada.
E de repente, os ventos uivaram com suas vozes graves. Trovão, chuva, tempestade. O vento parecia querer virar tornado, destruir as casas, e a massa deixou de lado a quebradeira para preservar a própria vida. É... a Mãe Terra está furiosa com os filhos malcriados e ingratos. Presumi que a enchente tomava conta lá fora. E com medo de sentir o abraço gélido da morte antes de pedirmos perdão pelo nosso egoísmo, nos abraçamos em meio ao som dos trovões e pedirmos perdão entre uma tempestade que não era só de água... e sim, de lágrimas.
Por que não fizemos isso antes, enquanto estava tudo bem?
... Continua...